O medo nosso de cada dia
Dilacera a carne
viola o corpo
finda a alma
cospe, ejacula, ignora
é só corpo, carne, coisa
exibe, ri, goza
é só uma piada.
xinga, culpa, julga
é vadia, tava pedindo, foi pro baile
a roupa é curta, o decote profundo
ela queria, não era virgem, já tem filho
é novinha, mas corre atrás do moço
sabe? É instinto, ele não consegue segurar
E ela? Nesse dia?
É mais um dia, sai na rua
Com que roupa?
Com qual batom?
Com qual decote?
E a saia? Aparecia o tornozelo?
Assim não pode
tá pedindo
tá deixando
tá querendo
tá, sim, merecendo
Se tivesse em casa
se tivesse na igreja
se tivesse trabalhando
se tivesse calada
se tivesse casada
Se não tivesse: vida
Salva estaria.
Que ódio é esse, mina! E eu? Não sou assim!
Nem todos são assim
Nem todos riem da piada
Nem todos contam a piada
Nem todos te ofendem
Nem todos te cantam na rua
Nem todos te passam a mão, a rola, o corpo, a língua
Nem todos te querem violentada
Nem todos te querem morta
Nem todos te querem exposta
Nem todos se compadecem
Nem todos te respeitam
Nem todos te olham
Nem todos se interessam
Nem todos são odiáveis
E eu digo: nem todos são odiáveis, mas nenhum sente o que é cotidiano.
Cotidiano? Como assim?
Aquilo que nós, mulheres, vivemos,
à cada saída na rua:
o apelo do cuidado
a sede pelo corpo
o anseio dos pais
o chiado do abuso
a mão que persegue
a rola que roça
os olhos que perseguem
todas vivemos: o medo.
Tu te ofendes por não ser todos?
Pois eu sinto medo: como todas.